VITÓRIA DOS ESTUDANTES: NOVA LEI DE COTAS TRANSFORMA O ACESSO AO ENSINO SUPERIOR NO DF

A busca pelo acesso à educação formal de qualidade tem sido uma luta constante para muitos estudantes brasileiros, especialmente aqueles que vêm de escolas públicas. Em um cenário onde o ingresso em universidades públicas ainda é um desafio significativo para jovens de baixa renda, em razão da falta de oportunidades, a história de dois estudantes do Distrito Federal se destacou como um exemplo de resiliência e mudança concreta.

Em fevereiro de 2024, foi promulgada a Lei 7.458/2024, do Deputado Distrital Ricardo Vale, que dá nova redação para a Lei 3.361/2004 e institui a reserva de vagas nas universidades e faculdades públicas do DF de, no mínimo, 40% por curso ou turno, para alunos oriundos de escolas públicas do DF.

Ou seja, agora, as universidades e as faculdades públicas do Distrito Federal ficam obrigadas a reservar, em seus processos seletivos, no mínimo, 40% das vagas por curso e turno, para os alunos que comprovem ter cursado integralmente os ensinos fundamental e médio em escola da rede pública de ensino.

O texto também autoriza os órgãos colegiados de admissão a concederem bonificação de até 10% sobre a nota do ENEM para o aluno da rede pública de ensino do Governo do Distrito Federal. Além disso, a nova legislação destina 1/5 dos 40% das vagas reservadas aos egressos que tenham renda per capita familiar de até 2 salários-mínimos.

Um resultado que, certamente, irá proporcionar oportunidades mais igualitárias no acesso ao ensino superior e que foi encabeçado por dois alunos do Projeto Gauss no DF: os amigos Jhonny Farias e Guilherme Menezes. Juntos, eles atuaram em um movimento de anos que culminou nessa promulgação histórica.

Jhonny, de 21 anos, estudou a vida inteira em escola pública – mais especificamente na escola Classe 02, do bairro Guará, em Brasília. Guilherme, de 24, também, mas na região do Núcleo Bandeirante. Ambos vivem na pele a realidade de alunos fora da rede privada de ensino, que não têm acesso às mesmas oportunidades para poderem viver o sonho de uma universidade pública.

Entre os dois estudantes, além das afinidades da amizade, há muitas coisas em comum: o desejo de cursar Medicina, a crença no poder revolucionário da educação e a garra para fazer as coisas acontecerem.

Enquanto a antiga Lei ainda estava em vigor, Jhonny e Guilherme pegavam firme nos estudos no cursinho Pódion, com bolsas de estudo concedidas pelo Projeto GAUSS – uma ONG de educação que oferece bolsas de estudo, auxílio financeiro, mentoria e apoio multidisciplinar para alunos com poucas oportunidades, mas muito potencial. Hoje, é referência no meio pré-vestibular com uma das alavancas mais eficientes de acesso ao ensino superior de qualidade no Brasil.

Porém, em 2020, em plena pandemia – quando todo mundo precisou encontrar novas maneiras de viver a vida, inclusive de estudar fora da escola –, a Lei foi derrubada pelo STF, que julgou o texto inconstitucional.

A sensação, segundo Jhonny e Guilherme, foi de “nadar, nadar e morrer na praia”; um balde de água fria para quem, finalmente, se via próximo de realizar o maior sonho de suas vidas: cursar Medicina em uma universidade pública.

O luto, porém, não durou muito – afinal, de que valia chorar sobre o leite derramado naquele momento, se o ENEM já era dali um mês? Fizeram, portanto, a prova.

Quando saiu o resultado do SISU, veio outra surpresa.

Para quem não conhece, o SISU é o sistema de ingresso utilizado pelas principais universidades federais e estaduais para preencher as vagas dos seus cursos de graduação. Todo ano, o SISU abre o processo seletivo duas vezes: no primeiro e no segundo semestre letivos. Para participar, é necessário ter feito o ENEM do ano anterior, e as vagas são disponibilizadas de acordo com a pontuação que os candidatos obtiveram na prova.

Quando houve a convocação dos candidatos selecionados para a faculdade ESCS – Escola Superior de Ciências da Saúde, cujo campus na Asa Norte oferta o curso de Medicina, Guilherme e Johnny perceberam que a nota de corte havia sofrido um aumento exponencial. Aquilo, definitivamente, não era uma realidade dos estudantes de escolas públicas do DF: quantos poderiam chegar àquela nota?

Eles sabiam a resposta: pouquíssimos ou ninguém.


A VIRADA DE CHAVE PARA A NOVA LEI DE COTAS, DE FATO, ENTRAR EM VIGOR

Os dois estudantes, então, começaram a pesquisar os alunos selecionados e bingo: de fato, não estavam chegando alunos da rede pública de ensino do Distrito Federal aprovados nessa universidade.

“O único jeito de ter a esperança de um dia voltar a estudar pra ingressar nessa faculdade, é tentando alterar a lei”, lembrou Guilherme.

O caminho foi seguir o bônus regional que algumas faculdades já adotam: uma bonificação na nota do estudante do ENEM, da sua região, que faz com que ele permaneça na sua respectiva faculdade.

Como ainda era época de pandemia, a mão na massa foi virtual. Johnny e Guilherme começaram a movimentar um grupo no Facebook do qual participavam, junto de 14 mil outros estudantes do Distrito Federal que prestavam vestibulares e provas do ENEM.

Muita gente chegou com interesse nesse viés político. Foram dias e noites de conversa, grupo no WhatsApp, projeto de lei montado e, então, tentativas de articulação com os deputados.

Não foi fácil.

Em 2021, outras propostas passaram na frente. Em 2022, o grupo até experimentou contatar o Poder Executivo através da Secretaria de Educação do Distrito Federal, mas não rolou – era ano de eleição e, consequentemente, de outras prioridades.

Ainda que a votação tivesse trazido novos deputados, com novos olhares, os meninos confessam que haviam perdido um pouco a energia – e a própria esperança – de tentar emplacar o projeto de lei. Mas não é nessas horas que as coisas parecem convergir?

No final de 2023, Guilherme acabou esbarrando em um amigo no Facebook que, até onde ele sabia, era amigo pessoal do deputado Ricardo Vale, eleito na legislatura de 2022.

O que Guilherme só soube depois é que, além de amigo, seu contato era assessor de Ricardo.

Sem muita pretensão, apresentou o projeto da Lei de Cotas com o intuito de ajudar os estudantes do DF a conseguirem melhor garantia nas universidades. A resposta veio um mês depois, com um convite para uma conversa no gabinete do deputado.

A esperança voltou com quase tudo. Afinal, além das derrotas consecutivas, a nota de corte na ESCS continuava aumentado e, assim, tornando ainda mais distante o sonho do estudante do DF de ingressar na universidade.

“Nosso foco era o estudante cotista, o estudante de rede pública, o estudante de baixa renda. A nossa meta era ajudar o estudante mais humilde.”

O projeto passou no Plenário e foi aprovado em segundo turno, mas recebeu um veto na hora da sanção pelo governo do Distrito Federal. A alegação era que a proposta já era uma premissa da própria universidade e iria prejudicar seu orçamento, porém, o projeto nunca teve custos: a nova lei nada demandaria dos cofres públicos do DF.

Pausa para respirar novamente e tomar mais um pouco de fôlego.

A pressão era intensa, mas a determinação de Guilherme e Johnny era ainda maior. Quando os deputados voltaram do recesso, em agosto, Guilherme retornou ao gabinete com um pedido para derrubar o veto, uma vez que o projeto não apresentava nenhuma inconsistência ou qualquer outro impeditivo. A receptividade, novamente, foi boa.

Contudo, a luta estava longe de terminar. Durante as sessões plenárias, os estudantes tiveram que mobilizar apoio constante, envolvendo mais e mais colegas e até professores em campanhas de conscientização. O grupo de estudantes, então, continuou a batalha: vieram os meses setembro, outubro, novembro e, finalmente, dezembro de 2023, com a última sessão do Plenário. Infelizmente, com muito mais projetos para aprovar, foi preciso esperar a virada de ano; mas finalmente a vitória chegou em 2024.

E, importante frisar, uma vitória de todos. “Todo mundo vai ser beneficiado. Essa é uma conquista para os estudantes da rede pública que estudaram a vida inteira em escola pública”, contou Johnny.

Ele pontuou também, com legitimidade de causa, que a Medicina, como vários outros cursos de uma universidade federal, é muito excludente. Basicamente, as pessoas que estudam lá têm condições financeiras e podem ficar o dia inteiro numa faculdade sem se preocupar em trabalhar e ajudar financeiramente em casa, por exemplo.

Por isso, esse é um tópico que está bem claro na nova Lei: o benefício é, de fato, somente para a pessoa que estudou 100% em escola pública.

“É muito ruim para a gente ver nossos amigos de escola, pessoas muito inteligentes – e não só intelectualmente falando, são várias inteligências múltiplas, interpessoais – que têm o sonho anulado de entrar em uma universidade pública.”

A jornada de Jhonny e Guilherme é um exemplo inspirador de como a persistência e a união podem trazer mudanças significativas na sociedade. A promulgação da Lei 7.458/2024, fruto do esforço incansável de um grupo de estudantes que vivenciou as desigualdades do sistema educacional, representa um marco histórico para a educação no Distrito Federal.

Essa conquista não só amplia as oportunidades para alunos da rede pública, mas também reafirma a importância de políticas inclusivas e igualitárias. A nova legislação promete transformar a vida de muitos estudantes, oferecendo-lhes a chance de perseguir seus sonhos e construir um futuro melhor através da educação.

“Agora que finalmente a Lei deu certo, estou sendo fiel a essa oportunidade que o Gauss me deu e sendo bem rigoroso nos estudos. Deu mais ânimo pra gente tentar sonhar que a nossa faculdade daqui, a ESCS, ofereça mais perspectivas para estudantes poderem ingressar nela.”